7 de março de 2009

A Torre: Primeiro Andar: Segredos

Deixou a porta colossal isolá-lo do mundo com um estrondo pedregoso e indiferente. Via uma masmorra comum; pedras cinzentas nas paredes, no piso e no teto; portas de madeira escura, assim como alguns móveis, distribuídos de forma aleatória pelo lugar; tochas nas paredes e no teto. Seria uma subida fácil, tinha certeza, se todos os andares da torre fossem assim. Deu passos destemidos adiante, o couro espesso de suas botas arranhando com uma vibração lapidosa, quase uma lamúria estúpida e desesperada. Deixou-se seguir pelo lugar, que se revelou um saguão amplo e frio. A mobília despropositada decorando o vazio estático com uma importância inusitada. Seguiu até uma das portas que vira. Envolveu a maçaneta dourada com sua mão determinada em vão esforço desapontado: a porta não abriu; um débil clique característico de recusa encheu o grande cômodo mais que suas passadas obstinadas. Foi até a próxima porta, para o mesmo resultado. Repetiu a operação em três mais portas, até desistir. Parou e refletiu, encarando as portas, suando frustração.

Devia haver alguma chave em algum daqueles móveis. Analisou de perto uma mesa de jantar que se estendia solitária, sem cadeiras ao seu redor. Não havia nenhuma gaveta, nenhum compartimento, nenhuma reentrância. O próximo móvel com que se deparou era um criado mudo. De cara, tentou abrir as gavetas, mas suas tentativas falhas eram sempre ecoadas pelo mesmo som, pelo mesmo clique. Enraivecido, puxou com tanta força uma das gavetas que as laterais do criado mudo se racharam suavemente, no que parecia o contorno de um raio negro que atravessava a madeira inutilmente. Passou o dedo indicador pela rachadura, sentindo o relevo cautelosamente, mas isso também lhe pareceu inútil. Seguindo, havia umas cadeiras, as quais o príncipe ignorou agitadamente, os olhos varrendo as paredes de blocos de pedra por algum outro móvel. Viu, enfim, uma penteadeira; esta parecia emanar de si um brilho sutil de relevância, algo que atraía o olhar do príncipe como um pêndulo de hipnose. Era um objeto de madeira escura, parado numa tranqüilidade pulsante, como um chamariz incompreensível, algo como o canto de uma sereia, não tão belo quanto enigmático, mas igualmente magnético.

Aproximou-se do objeto quase que automaticamente, como se seus pés seguissem um protocolo secreto, que permanecera escondido até esse dia. Levemente encantado, embora ainda tivesse um ligeiro resíduo de consciência, esticou o braço para tocar a madeira áspera com os dedos, deixando um rastro tosco de oleosidade na superfície. Então notou o espelho, que era o que lhe parecia ser a fonte daquela misteriosa luz invisível. Nele, viu apenas o seu rosto perplexo: todo o ambiente, os móveis, as paredes, as portas, estavam ausentes. Em seu lugar, uma névoa tricolor, branca, prateada e quase azul, opaca e crespa, flutuava, respirando, num ritmo bem vivo. Girou o pescoço rapidamente, como se não quisesse que a névoa se fosse, apenas para ver tudo o que já tinha visto; sentiu raiva de si mesmo e de sua ingenuidade. Tornou a observar a bruma que pulsava no espelho. Sem tirar os olhos da imagem, agitou os braços atrás do corpo, na esperança de dissipar a nuvem, ou de pelo menos lhe causar algum efeito. Talvez tenha percebido um sutil movimento no momento em que seus braços balançavam mais furiosamente, mas provavelmente o imaginou. Abaixou os olhos para a madeira constante da penteadeira.

A névoa não sumiu, pensou, mas tem algo que devo fazer para vê-la. Teve então a idéia: com um golpe repentino, que sacudiu a atmosfera limpa e traiçoeira do saguão, elevou o pé até a altura do espelho e o despedaçou com um chute forte. Por um momento, os cacos de espelho não eram que cacos de espelho, refletindo uma névoa absurda acima de si. O príncipe se curvou, paciente, e pegou na mão um dos maiores pedaços do espelho. Agitou-o, girou-o, deu-lhe tapinhas, e nada parecia acontecer. Arremessou-o de volta ao chão. Nisso, um ruído ensurdecedor de metal arranhando metal preencheu o saguão como se um dique se houvesse rompido. O ar pareceu ficar mais pesado. Respirar, outrora uma função inconsciente do corpo, se tornava a cada segundo que passava uma tarefa mais árdua. Seus ombros pareciam ser empurrados para baixo por bigornas; suas juntas perderam a força, e ele as sentia como geléias imóveis. Por um instante, era como se o chão se erguesse e o teto se abaixasse; no instante seguinte, bonança. Quase que dolorosamente abriu os olhos para senti-los arder como nunca antes. Pior que essência de cebola concentrada esfregada com álcool sobre seus olhos. Voltou a fechá-los, sentindo as lágrimas escorrerem.

Ainda distraído pela queimação que sentia nos olhos, deu alguns passos displicentes a sua frente, e escorregou em alguma coisa. Em um momento pisava no chão firme de pedras sólidas, e no próximo suas botas afundavam num lodo muito resvaladiço. Ainda caído no chão, ouviu uma voz profunda e fantasmagórica, algo como uma advertência distante de um autômato titânico, pois soava automática, protocolar. “Libertastes aquilo que se escondia – aquilo que não podeis ver! Lutai e saí sem usar os olhos, e sereis recompensado!” O anúncio ecoou como um ser espectral que vaga no escuro. O príncipe estava na escuridão. Fazia esforço para manter os olhos fechados. Levantou-se, apoiando-se sobre um dos cacos do espelho que quebrara. Mal se pusera de pé, algo o atingiu nas costelas. Voou e aterrissou com um grito de dor nos blocos de pedra do chão. No instante em que foi tocado, o príncipe não sentiu uma arma conhecida ou qualquer coisa parecida com um golpe desferido por um homem ou animal. A pancada em si era acolchoada, quase como se o que importasse não fosse o objeto que o atingira, mas a força que fez ao atingi-lo. Deitado, abatido, sentiu o ar ficar mais úmido, pesado e frio. Ainda prostrado no chão, recebeu outro golpe. Algo pouco denso, pouco sólido, liberava sua fúria contra sua barriga. Sentiu que era a névoa o agressor. Rolou para o lado. Alcançou sua espada e, agora sentado, a empunhou. O ar secou, ficou mais leve e quente. A névoa havia ido. Levantou-se, sentindo uma dor aguda nas costelas, a espada em punho. Sacudiu-a com a intenção de perfurar a nuvem. Sentiu o ar mais pesado, mas dessa vez nada o atacou. Sacudiu a espada como se a névoa fosse uma pessoa que estava de pé encarando-o; passou a imaginar uma pessoa. O ar voltou ao normal, e em seguida se adensou novamente. Fez um contorno mental nítido do corpo de um homem segurando uma espada, e atacou essa imagem.

Não sabia se obtivera sucesso ou não. O ar ficou muito mais pesado; o príncipe sentiu perder o controle de seus músculos, mas não caiu, permaneceu de pé, como se tivesse sido embebido numa espécie de gelatina, na qual não podia se mover. Sentia a espada na mão, mas não fazia força para segurá-la. De súbito, tudo parou, e caiu de joelhos no chão, a espada a seu lado fazendo um estrondo metálico escandaloso. Arfando, tateou pela espada. Sentia, pouco a pouco, o ar voltar ao normal e encher seu pulmão de uma vontade renovada de vitória. Pensou na princesa e apertou o cabo da espada como se esperasse modelá-lo como argila. Num único movimento, ficou de pé e deu impulso para frente com as pernas; num salto habilidoso, a espada a frente do corpo, ereta. Num lapso de insanidade, permitiu-se abrir os olhos. Para sua surpresa, eles não arderam. Viu uma névoa que emergia das fendas entre os blocos de pedra no chão e se desenvolvia em tentáculos como uma espécie de árvore em movimento. Viu-se envolvido na névoa, sentiu uma ligeira queimação nos olhos, mas não se importou: sacudiu a espada caoticamente, procurando passá-la pelos tentáculos da coisa. No final, a entidade misteriosa murchava como uma anêmona moribunda, até se transformar em uma esparsa fumaça flácida e translúcida que pairava sobre o piso.

Observou a névoa derrotada no chão por um tempo, mas não entendeu como aquilo o ajudaria a abrir em qualquer uma daquelas portas (contara seis). Como um fenômeno-resposta, a névoa começou a se contrair, todo seu volume convergindo para um único ponto. Os cacos do espelho eram visíveis novamente, e agora se dera conta de que partira duas cadeiras e uma das pernas da mesa. Enquanto analisava a destruição do lugar, a névoa se concentrava mais e mais, até parecer uma bola de neve estranha, que se contorcia involuntariamente numa anomalia natural. Mais e mais se contraía, até se parecer com um objeto sólido. O príncipe se acocorou e examinou de perto o fenômeno. Esticou a mão para segurar o objeto branco. Em sua mão, se formou uma chave quente. Deu um sorriso e, munido da chave, andou até a primeira porta.

Sentiu-se caindo num abismo sem fim quando o mesmo clique de rejeição o cumprimentou na primeira porta. Foi à segunda, onde o mesmo aconteceu. A tensão e o desespero recrudesceram até chegar à sexta porta, que o recebeu com um estalido morno e aveludado, inconfundível: a porta se abrira. Sua mão trêmula acariciou a maçaneta dourada antes de girá-la. O cômodo que viu era bem menor que o saguão onde estivera: o material das paredes, chão e teto era o mesmo, e as tochas que o iluminavam eram, também, iguais às do lugar onde enfrentara a névoa; porém, não havia mobília ou qualquer sinal de névoa maligna. Fechou a porta atrás de si e, quase instantaneamente, seus ouvidos foram preenchidos pela mesma voz automática, mas dessa vez mais reverberante: “Fostes bem-sucedido em vossa empresa, bravo herói! Como recompensa, recebei esta ampulheta”. A voz cessou. Alguns segundos depois, um bloco de pedra arrastou-se para fora do lugar com um rangido ensurdecedor de pedra contra pedra e um baque alto ao cair no chão. Caminhou lentamente até o vão que se formara, e, bem no fundo, havia uma ampulheta três polegadas de altura por duas de diâmetro, toda a areia assentada no fundo. Pegou-a. Novamente, essa simples ação engatilhou outra.

Toda a sala começou a tremer. A princípio, timidamente, depois, freneticamente. Muitos blocos de pedra pareciam se soltar das paredes e do teto. O príncipe, rapidamente, cambaleou até a porta, tentando manter-se de pé, mas não conseguiu abri-la. Desesperadamente, tentou enfiar a chave na fechadura, que ainda estava na sua mão esquerda (enquanto que a ampulheta estava na direita), mas ela não entrava mais. Num baile caótico de poeira e pedra, prendeu-se à porta, segurando com firmeza a maçaneta da porta com a mão esquerda, a chave entre sua palma suada e o metal gélido. Em seu reino não havia terremotos, mas, algumas vezes, em sua infância, visitara sua tia, condessa de uma província do litoral, onde terremotos eram freqüentes. A sensação era parecida, mas, no castelo de sua tia, embora muitos objetos parecessem chover sobre ele, como candelabros e pinturas, raramente blocos de pedra se soltavam das paredes e do teto. Quase que magicamente, nenhum pedaço de pedra o atingiu, apesar de parecer estar cercado de pedregulhos ameaçadoramente grandes.

Tal subitamente qual começou, o tremor cessou. Quando se deu por si, soltou a maçaneta da porta. Por um instante, não reparou no que ocorrera, pois a nuvem de poeira que pairava no ambiente não havia se dissipado. Com algumas tossidas, no entanto, abriu-se um caminho para sua vista. Seus olhos se recusaram a crer: erigira-se, perante o príncipe, uma escadaria em espiral. O fenômeno contrariava o senso comum e suas parcas noções de física, mas definitivamente não estava alucinando. Como um animal ignorante se deparando com um magnífico monumento erguido pelo homem, o príncipe se levantou e se aproximou da escadaria que se arquitetara por uma chuva de pedras aparentemente aleatória. Os olhos arregalados, tocou, com a mão esquerda, a chave agora em um bolso, a escada. “Subi!” ecoou a mesma voz. Hesitante, pisou no primeiro degrau. Parecia firme. Subiu. Espada nas costas, ampulheta na mão e chave no bolso.