4 de dezembro de 2009

Distúrbio

Sua imaginação, sua capacidade de inventar a miséria, não mais era suficiente. Ele começou a procurar nos bares, nos becos, nos shoppings, nas praias, pelas suas próximas personagens, que deviam ser mais reais que si próprias. Elas não estariam sujeitas ao fingimento intencional do autor, mas à sua própria mentira, acidental e poética em sua banalidade.

Um dia viu, então, sua nova protagonista: petrarquiana, era loira e via um mundo pelas lentes mais azuis que já vira; bochechas coradas, lábios fartos; caminhava, voluptuosa, numa rua desimportante, quase escondida -- ia a qualquer lugar com passos resolutos, desfilava, só não era perfeita por estar na sombra. Ele a observou e, de imediato, soube quem era: Ingrid, trophy-wife de um empresário velho, barrigudo e de maus-modos, uma mulher bonita que trocara a independência pela submissão de uma forma tão lindamente imbecil que apenas um personagem podia ser. Mas não aquele dia: sua bolsa Hermès balançava ao seu passo descuidado até o escritório de um excelente advogado de divórcio – acusaria o marido de maus-tratos, tentaria secá-lo de sua fortuna. Ele ainda assistia à caminhada heróica (enquanto caminhava roedoramente) quando os brincos dourados da mulher o ofuscaram: estava sob o sol. Foi impedida, desatenta, de ser atropelada por uma velha pobretona que trajava um vestido de maria-mijona; parou, mal-agradecida, no meio-fio, onde esperou que o sinal cumprisse seu dever e se tornasse vermelho, dando-lhe passagem; enquanto os carros não lhe davam licença, tirou um par de modernos óculos escuros D&G da bolsa e privou o autor de um contato mais demorado com o vitral marinho de sua íris (soubesse-o, teria passado mais tempo observando-lhe os olhos, no lugar da bolsa ou dos cabelos). Ele a acompanhou por mais um quarteirão; ela entrou na portaria de um gabaritado prédio comercial, perdendo-se entre os ternos e terninhos do centro da cidade.

Duas semanas depois, viu seu marido, num restaurante na Gávea, enquanto almoçava. Era um homenzarrão, um varão grande, que podia facilmente chegar a um metro e noventa e cinco; era "um homem de diâmetro", pensou, notando-lhe a barriga acentuada, guardada e escondida dentro de um terno de excepcional alfaiataria. Conversava frivolidades com dois outros homens, vestidos da mesma forma e de postura semelhante; dava gargalhadas potentes, reverberantes, que faziam propagar sua voz grave de homem de poder. Começava a perder o cabelo, mas ainda não tinha fios brancos. Mas sua conversa de fanfarronices empresariais foi interrompida por um telefonema; pediu a licença devida e retirou-se da mesa, foi até o lado de fora do restaurante, acendeu um cigarro e atendeu a ligação. O homem parecia desconfortável; andava nervosamente de um lado a outro, o cigarro queimando numa mão, o telefone na outra, entre o ouvido e sua palma suada, e sob o sol do Rio; claramente, ele procurava não levantar a voz -- falava com a esposa: discutiam. Desligou um desligamento inconsentido; deu uma tragada funda e coseu um sorriso ao rosto quando da volta ao ar-condicionado. Disse uma bobagem qualquer aos amigos, que deram risadinhas nervosas e desconfiadas, mas não ousavam fazer a pergunta que queriam.

Na domingo de manhã, viu a empregada num ponto de ônibus, voltando para casa. Uma mulher que não era negra e não era nordestina, mas algo de ainda menos prestígio, notou, que tinha nas rugas precoces do rosto as marcas da pobreza, da baixeza, do trabalho braçal, da rotina e de um lar distante e quase onírico, de tão pouco que o via. Uma mulher que não morava nem lá nem cá: nem em Santa Cruz, nem na Gávea; que transitava entre um mundo e outro com tanta facilidade que a sinceridade se esvaía dela como os anos e a saúde: sem sua anuência. Ela conversava com uma colega de serviço, fazendo todos os gestos, todas as caras, todas as bocas, encenando uma pantomima à la diarista; evidentemente, falava sobre a vida do casal a que servia. Nos últimos meses, seu casamento lhe tem parecido mais infeliz. O marido destratava a esposa; beijava-lhe os pés à noite, mas não ouvia uma palavra sua pela manhã; sua inconstância era uma ameaça a qualquer esperança de harmonia. A esposa reclamava mais e mais, fazia questão de exibir-se carente e aborrecida – o que frequentemente descontava na empregada, amolando-a com detalhes sabidamente desprezíveis, mas que lhe devolviam o poder que perdera. Se ouviu certo, ela até mesmo conversava com as amigas ao telefone sobre divórcio. Nada disso importava muito mais à empregada que a trama da novela: ela queria mesmo era o dinheiro da passagem.

Apenas dois meses depois veria o próximo personagem. Um homem de lá seus quarenta e poucos anos, arrumado; emanava certa pompa, uma pose indefinível de advogado. Tinha um narigão de judeu, e o era. Andava com uma mulher que talvez não fizesse justiça ao seu físico invejável e seu ar aristocrático e um menino de uns nove ou dez anos, certamente seu filho, no Shopping Leblon. Ele carregava duas sacolas: Salvatore Ferragamo e Calvin Klein Jeans, não se sabe se para ele mesmo ou para sua mulher; o garoto andava um pouco a frente dos casal, ocasionalmente virando-se para fazer algum comentário; pareceu hiperativo, talvez impaciente, como se lhe houvessem prometido uma ida à loja de brinquedos ou videogames. O advogado contava à esposa sobre uma cliente sua, e sobre o valor que tinha concordado em pagar para consultar-se com ele; ia depenar o marido em tribunal -- e isso parecia fazê-lo contente, e à esposa também.

Veria, ainda, o juiz, as amigas da mulher e a ex-esposa do homem. Escreveria a história de todos eles aproximadamente um ano mais tarde, antes de se afogar em álcool e cocaína e morrer tragicamente em seu apartamento, sobre o sangue expelido de seus pulmões, ornamento nefasto das fotografias que tirara de seus personagens, das anotações ininteligíveis escritas em post-its amarelos; sua morte foi importante a ninguém que a mim, pois apenas eu o escrevi, escrevendo os outros.