Não conseguia acreditar; ela terminou tudo. Não tinha mais show, não tinha mais jantar, não tinha mais fim de semana, nem ano novo, nem Búzios. Nunca mais aproveitaria sua casa em Búzios, tampouco veria sua família, a Carlinha, o Edu, a tia Lola, o vizinho argentino.
Acabou seu mundo. Estiveram juntos por cinco anos, apenas como namorados. Cecília realmente acabou com ele. Márcio se acostumara à rotina do namoro, dissera, e também mais uma porção de coisas. Não importava exatamente o quê: dessa vez, sabia que era definitivo.
Já não se entendiam fazia um tempo. Andavam brigando, discutindo por nada. Ele, sempre muito preguiçoso, ela, sempre muito orgulhosa. Deu no que deu. Mas ruim para Márcio não foi perder a namorada, porque já não se amavam: ruim mesmo foi perder a rotina.
Agora, viria todo o ritual de rompimento. Ficariam um período sem se falar, procurando ver quem conseguia a custódia dos amigos. Márcio ficaria um tempo sem sair: as habilidades de Cecília para organizar noitadas, idas a bares, a shows, a restaurantes e qualquer outro evento eram o trunfo da vida social dele. Cecília ficaria um tempo meio sem chão: se não fosse por Márcio, não sairia de casa, mas ia se atolar em trabalho.
Passariam poucos meses, dois ou três, e tudo voltaria ao normal. Voltariam a se falar, no começo se esboçaria uma amizade tímida e desconfiada, repleta de obstáculos, que viriam na forma de uma ocasional tensão sexual ali, uma recordação calorosa acolá. Mas em breve o desconforto daria lugar a uma relação gostosa, sem a pressão, sem o cotidiano.
Mas, para Márcio, o grande problema não estava no doloroso e cansativo processo pelo qual passaria e para o qual se preparava, mas nos ingressos. Comprara dois ingressos para o show de uma das bandas favoritas de Cecília, numa tentativa desesperada de recuperá-la e provar-lhe ser ele também capaz de organizar uma saída.
Óbvio que o show não ia mais rolar, e algo deveria ser feito. Cecília recusou categoricamente os ingressos, disse-lhe que podia ficar com eles. Márcio não os queria, não era grande fã dos caras. Só tinha uma solução: devolvê-los à bilheteria.
Numa manobra inédita à atendente da bilheteria da casa de shows, um hall desses da vida, Márcio entrou na fila no mesmo dia em que os comprou, ainda abalado com a separação (pensou, um bom tempo, no café da manhã que Úrsula, mãe de Cecília, preparava – geléia caseira, pão preto, suco fresco, leite quente no inverno). Chegada sua vez, ele notou que não pensara no que, exatamente, diria.
“Escuta,” começou, sem jeito, “preciso devolver estes ingressos”. Fez um sorriso amarelo, daqueles que se dá depois de se pedir por um favor meio impossível.
“Desculpe, senhor, mas isso não poderá estar sendo feito, não”, ela negou, mascando ruidosamente um chiclete sabor tutti frutti.
“Como assim?” Pergunta sem propósito, na verdade. “Eu preciso devolver esses dois ingressos, aqui”, ele sacudiu os ingressos na frente do círculo de vidro. “Eu te dou os ingressos, você me dá o dinheiro de volta”
“Desculpe, senhor, eu não sou autorizada a fazer isso”, respondeu a mulher, que só faltava estar lixando as unhas.
“Eu acho uma transação bem fácil”, ele explicou. “Os ingressos são produtos que eu comprei. Infelizmente, os produtos não me satisfizeram, então eu preciso devolvê-los”.
“São ingressos, senhor, não produtos”, ela resmungou, impaciente. “Senhor, vou ter que pedir pro senhor se retirar, que o que você está pedindo eu não posso resolver”.
“Claro que pode”, Márcio respondeu, olhando rapidamente para os lados à procura de algum panaca que o havia cutucado apressando-o. “Você não quer”.
“Senhor, nós somos fiscalizadas e é tudo contabilizado”, ela disse. “Agora, vou ter que pedir pra o senhor sair que a fila está ficando grande”.
“Você não está entendo, docinho:”, alguém agora estava gritando algo como ‘tem pressa, não’, “eu rompi com a minha namorada há dez minutos atrás, umas duas horas depois de ter comprado os ingressos. Eu não gosto da banda, ela que gostava. Logo, eu não quero vê-los tocando, e ela não quer saber de nada agora... Agora, dá pra ser ou está difícil?”
“Senhor, o motivo do senhor é irrelevante. Eu não estou autorizada a reembolsar ninguém por ingresso nenhum”. Ela olhou o relógio, olhou para o lado, olhou para o telefone. “Vou chamar o segurança, senhor”.
“Sabe do que mais?”, ele disse, nervoso, “não quero reembolso porra nenhuma”.
Saiu da fila acompanhado por olhares transtornados, amassando nas mãos suadas os ingressos. Pôs-se a andar a casa. Não queria os ingressos. Não queria a memória dos ingressos. Ia jogá-los em qualquer próximo recipiente laranja que visse pela rua.
Mas tampouco o lixo lhe pareceu uma boa idéia. Era o pensamento de os ingressos continuarem no mundo, não sendo usados, como reminiscências de um fracasso inusitado, como nostalgia longínqua do que não aconteceu. Os ingressos deviam ser de outra pessoa. Parou, no meio da rua, e teve uma idéia. Talvez a idéia mais insana que já tivera.
E, desde aquele dia, foi um dos cambistas mais apaixonados a andar pelas ruas da cidade.