7 de março de 2009

Narração

E se perguntou quando teria uma epifania enquanto andava serenamente, sem chamar atenção, para fora da biblioteca. O verde das árvores e o azul do céu eram os mesmos de sempre; os pássaros perseveravam em seu vôo de instinto; as pessoas buzinavam apressadas em suas preocupações urbanas; tudo era prosaico como sempre fora.

Enquanto apertava os livros contra seu corpo, a mochila de mulher batendo nas costas, deixou-se distrair por nada e tropeçou no tempo. Os livros caíram, tudo caiu.

Exegese

Sentado à escrivaninha de carvalho de todos os dias, entrou um aluno, ainda mais outro aluno; juntos, todas as semanas, faziam uma sessão de interpretação de texto. O último livro era um romance de um autor pouco célebre; tratava-se da história de uma universitária que passava por uma jornada de auto-conhecimento ao descobrir uma amizade com uma vizinha anciã.

Bebeu do café que sua secretária lhe trouxera e recebeu o estudante apaixonado com a simpatia solene e austera dos mestres, com a paciência condescendente dos pais; ao fundo, as modernas caixas de som exalavam bossa nova pelo escritório intelectualmente mal iluminado, de madeira escura e veludo verde, estantes onustas, quadros impressionistas, fotografias em preto-e-branco. A atmosfera de intimidação convidativa era aconchegante e opulenta, e o rapaz sempre se sentia um tanto pequeno dentro do estudo, mesmo com o espaço físico reduzido.

[Música

Dia de luz, festa do sol, e um barquinho a deslizar, no macio azul do mar.]

Narração

No ônibus leu mais um pouco da poesia de Baudelaire que deveria ler até terça-feira; entreteve-se com o progresso de seu francês, já passando de intermediário a avançado, na escala imprecisa da indústria das línguas – viu uma palavra que não conhecia, mas não quis pegar o dicionário, faites des hypothèses, já dizia seu antigo professor do idioma. Não conseguiu deduzir o significado da palavra e mesmo assim ignorou o dicionário.

Chegou a casa e não viu que luz e calor; ai, a primavera ridiculamente quente dos cariocas, como agüentavam?

Exegese

“Aqui, vê-se qual característica do romance tipicamente romântico?”

Pegou a arma calibre doze e atirou seis vezes contra o português gramatical do professor. “Não vê-se –”, começou, quando a adaga de um ninja purista perfurou o aluno – “Não se vê, faça-me o favor”, corrigiu rispidamente, “advérbios de negação atraem pronomes oblíquos átonos”.

“Sim, então, como dizia –”

[Música

É um caco de vidro, é a vida, é o sol, é a noite, é a morte, é um laço de anzol.]

Narração

Morreu.

Exegese

Acabou o encontro; despediram-se. “Até semana que vem”, disse o professor, com a voz grandiloqüente de sempre.

[Música

Eu nunca sonhei com você, nunca fui ao cinema, não gosto de samba, não vou a Ipanema, não gosto de chuva, nem gosto de sol e quando eu lhe telefonei, desliguei foi engano, seu nome eu não sei, esqueci no piano as bobagens de amor que eu ia dizer, é, Lígia, Lígia.]


Poesia

É Lígia.

Pára de te preocupares sem razão, Lígia.