7 de março de 2009

A Sapa Florentina

A pele verde e rugosa escondia a alma branca e lisa da sapa Florentina, sempre à margem do mesmo lago azul e brilhante, sob as árvores verdes e vistosas. Mas Florentina era diferente das suas amigas: queria ser princesa. Infelizmente, pelo que ouvia nas histórias que contavam na escola, ser princesa era muito, muito, muito difícil.

Antes de tudo, deveria achar um príncipe lindo, cavalheiro, simpático, inteligente, culto e rico, e ele lhe beijaria a pele verde e rugosa e transformá-la-ia numa linda princesa de cabelos longos e loiros e olhos azuis e pele tão alva que daria inveja às nuvens mais brancas.

Mas isso era quase impossível!, e mesmo assim, Florentina se agarrava a esse quase como um carrapato ao traseiro de um boi e nunca deixava de crer, mesmo por uma piscadela, que conseguiria realizar seus sonhos. Enquanto as outras sapas, pobres contentadas, riam-se de Florentina, ela se perdia conversando com as flores, altas em sua sabedoria colorida e passageira. Um segredo: só Florentina sabia conversar com as flores – mas só quando as flores queriam.

Até que, um dia, Florentina, cansada dos risos pelas suas costas e dos contos de fadas que só eram histórias, partiu. Saltitou para longe dali, para longe daqueles sapos derrotados, que para sempre sapariam sapisticamente em sua sapeza sapal. A estrada era dura e longa, cheia de perigos e armadilhas, mas Florentina não desistiu.

No primeiro dia, encontrou uma borboleta: “Se você quiser ir para o lago, está no caminho errado”, disse ela.

“Eu estou indo para dele!”, respondeu Florentina, enfezada com a assunção da borboleta.

“Uma sapa fugindo do lago!”, exclamou a borboleta surpresa e pousou sobre a pétala de uma margarida, “Ora bolas, era só o que me faltava!” Florentina não disse nada, apenas observou a expressão de espanto no rosto da borboleta.

“Para lá,” continuou, “fica a cidade”, a borboleta informou, parecendo ansiosa. “Você não vai gostar de lá!”

“O que é uma ‘cidade’?”, Florentina indagou, confusa e inocente. “E o que há de tão ruim por lá?”

A borboleta agitou as asas multicores e numa gargalhada longa e gostosa, mas Florentina não achou graça nenhuma.

“Só vendo para entender...” Ela parou por um minutinho e ponderou. “Te digo o seguinte: eu te levo até o comecinho da cidade pra você ver como é que é”. Florentina assentiu e elas seguiram e elas seguiram juntas pelo caminho de terra escura e úmida.

No segundo dia, encontraram uma minhoca. “Olha, o lago fica pra lá!”, disse, crendo-se prestativa.

“Estamos indo à cidade!”, rebateu a borboleta, cheia de si. Florentina tremia nas costas a folhinha que embrulhava seus pertences (um livro de histórias e um espelhinho, para ficar bem bonita para o príncipe).

“Estão loucas?” A minhoca se exaltou, virando os olhinhos negros e vítreos de um lado para o outro. “Toda minha família foi exterminada lá!” Florentina deixou escapar uma interjeição de horror: seria seu príncipe um habitante de um lugar de tão horrível? Casar-se-ia com um exterminador? Dúvidas verdes surgiram como verrugas em sua alma.

“Você não sabe que só os trouxas são exterminados?” Disse a borboleta, com ar superior. A minhoca, obviamente, pareceu triste. “E se você escapou, deve ser muito safo!”.

O elogio da borboleta iluminou o rosto pegajoso da minhoca solitária, que deixou brotar em sua face um cogumelo de alegria.

“Por que você não vem com a gente, então?” A borboleta propôs, esperando supera o mau começo. A minhoca pensou, ponderou, conjeturou, refletiu e concordou, claramente um pouquinho receosa.

No terceiro dia encontraram um pardal. Aterrissou, agitando as plantinhas próximas, e disse: “Estão perdidos?”. As penas eram de um marrom pouco especial, mas seus olhos brilhavam como a lua no outono.

“Estamos indo à cidade”, informou-lhe a minhoca. O pardal assobiou uma risada bonita, mas ninguém riu com ele.

“Vocês conhecem alguém por aquelas bandas?” Perguntou, mas não obteve resposta. “Ninguém?” Deu outro riso cantarolado.

“Você conhece alguém lá?” A borboleta lhe perguntou de volta. Florentina estava nervosa, não queria que se desentendessem com um pardal.

“Minha família quase toda mora lá!” Era respondeu, com uma prepotência perdoável e bonita. “Se vocês quiserem...”

“Sim!” Gritou o grupo.

“... eu vou com vocês...”

A minhoca, que era a menor e mais lenta de todos, montou o pardal como um cavalo e eles seguiram viagem.

No quinto dia, já podiam ver a cidade. Mas, antes de lá chegar, deram de cara com um gato. Um gato grande e com cara de mau, de um preto tão preto que ficava invisível numa noite de céu nublado. Cortesmente, fechou o caminho do grupo, deitando-se como uma muralha na trilha.

“Vocês já sabem o que tem mais adiante”, ele disse, presunçoso. “E, mesmo assim, vocês estão indo lá”.

Ele esperou que alguém falasse, mas ninguém ousou.

“Para se arriscar assim, vocês devem ter um bom motivo!” Eles se entreolharam, confusos. Florentina não contara seus motivos a ninguém e, de repente, sentiu uma vergonha danada de contar. “Opa, essa eu quero ouvir!”

“É, você nunca nos contou o motivo de sua ida à cidade!” Observou a borboleta, ecoada pelos outros.

“Conta!” Pediu a minhoca.

“É que... eu–” o gato se divertia com a vergonha da sapa, “eu estou procurando um príncipe para me beijar e aí eu ser princesa”. A borboleta riu, a minhoca ficou confusa, o pardal riu, o gato permaneceu impassível.

“Você está procurando um príncipe?” O gato inquiriu uma última vez, como se para ter certeza. Florentina fez que sim. “Lá, naquela cidade?” Florentina fez que sim. “Você está de sacanagem?” Florentina fez que não.

O gato se meteu a rir, rir tanto, mas tanto, mas tanto, tanto, que Florentina começou a chorar. Sentiu as lágrimas vindo e subindo e chegando e não agüentou. Quando começou a chorar, todos pararam de rir e fitaram-na por uns segundos.

“É verdade!” Ela gritou, se esganiçou, ralou a garganta. “Quando os sapos são beijados viram príncipes, e quando as sapas são beijadas, princesas! É a verdade!” Soluçou. “E quando eu for princesa, todos vocês que me ajudaram vão ter um emprego no castelo!”

Com essa última frase, todos sentiram uma vontade maior de ajudar. E os cinco rumaram para a cidade, todos nas costas do gato preto.

No sexto dia, entraram na cidade. Havia carroças, barulhos, tendas, feiras e pessoas! Pessoas para todos os lados: dava um medo dos diabos de ser pisado! Mas o gato era muito hábil e desviava de todas as pessoas distraídas.

Foram até um beco onde fizeram uma conferência. “E agora?” Perguntou o gato. “Onde é que acharemos alguém para beijar você?”

“Qualquer um serve, oras!” O pardal disse, varrendo com seus olhos matutos as poucas pessoas que podia ver do beco.

“Que nada!” Disse Florentina. “No meu livro,” abriu sua trouxinha e sacou lá de dentro um livrinho, “diz que ele tem que ser:” começou a ler, “lindo, cavalheiro, simpático, inteligente, culto e rico”.

“Isso vai ser impossível!” A minhoca disse. “Aqui são todos feios, grossos, antipáticos, burros, ignorantes e pobres!”

“Não, não pode ser a cidade inteira!”, contestou a borboleta. “Tem que ter alguém aqui com essas características”. Mas não continuaram a conversa. Estavam todos muito cansados. Pararam e dormiram.

No sétimo dia, foram acordados por uma aranha cabeluda. “Eu ouvia a conversa de vocês ontem e eu me dei ao trabalho de procurar – só quero saber o que eu ganho se lhes apresentar um homem lindo, cavalheiro, simpático, inteligente, culto e rico”.

“Você ganha um cargo no meu governo, ora”, Florentina disse, recém-acordada, ainda em seu estado de sapa.

“Por que você é a Rainha Elizabete?”, caçoou. “Ai, ai, cada maluco que me aparece...”

“Não, sua cabeluda, é que quando um homem com essas características a beijar, ela vira princesa, e, aí, ela dá emprego para todo mundo no castelo!” O gato explicou.

“Agora ficou mais interessante!” A aranha, então, subiu por sua teia até certa altura e pareceu calcular alguma coisa, como uma distância, talvez. Desceu e disse: “Se partirmos agora conseguimos uma carona numa carroça de um conhecido meu”. Saíram, todos seguindo os passos ligeiros da aranha.

No oitavo dia, conheceram o conhecido da aranha: um cavalo enorme. Ele disse que tudo bem, que só o que precisavam fazer era subir à caçamba e se esconder por entre as sacas de açúcar. Esta feita, subiram e esperaram.

Chegaram a uma casa enorme, onde havia um jardim esplendoroso com flores magníficas. Foi quando Florentina ouviu uma lilás lhe gritar de longe: “Eles não querem o melhor para você! Só querem um emprego no castelo!”. Florentina se desprendeu do grupo, que ficou a ver navios sem entender xongas, e foi conversar com a lilás.

“Mas eles me ajudaram muito até aqui!” Florentina disse.

“Não te ajudaram porque gostam de você, mas porque querem um cargo no castelo!” A lilás disse. “Estão te ajudando pelos motivos errados!”

“E eu devia simplesmente recusar sua ajuda?”

“Absolutamente! De jeito maneira!” Ouviu, de outro canteiro, um copo de leite. “Se estão ajudando, estão ajudando!”

E Florentina ficou assim, nesse impasse. Ficou parada, e todos do grupo a chamá-la. E foi aí que aconteceu: veio um homem lindo que, sem vê-la, deu-lhe um pisão. “Meu Deus!” Exclamou. A sapa indefesa agonizando na grama comiserou o homem, que a tomou nas mãos quentes e deu-lhe um beijo rápido.

Virou princesa.

Numa explosão fantástica, faíscas prateadas ofuscaram todos enquanto Florentina ia de sapa a mulher. Cresceu e mudou. Era exatamente como acreditava que seria. Lá estava ela, nua, no meio do jardim, todos os bichos a fitando admiradamente e um homem espantado e encantado.

“Não disse?” Florentina brincou, virando-se para os animais.

Acontece que Florentina se casou com aquele homem lindo, cavalheiro, simpático, inteligente, culto e rico. Adotou todos os animais que a ajudaram a chegar até ali e viveram naquela casa por muitos anos, numa felicidade só!

A borboleta, a minhoca, o pardal, o gato e o cavalo que ajudaram Florentina, na verdade, não se sabe, até hoje, se fizeram o que fizeram por compaixão ou por ambição, mas não importa: hoje são eternamente gratos a Florentina, e não poderia ser diferente.

A pele alva e lisa esconderia, por muitos anos ainda, a alma alva e lisa de Florentina, a mulher, sempre sob o mesmo céu azul e absoluto, rodeada por flores de todas as cores, com quem conversaria todos os dias.

Afinal, Florentina merecia. Florentina sonhou, Florentina foi atrás! Florentina ousou querer mais!.. E o conseguiu...