6 de setembro de 2009

Digressão

Em sua típica presteza de mãe, me ajudou a dormir -- tirou da cama as coisas que lá havia posto quando chegara em casa do trabalho. A mochila, as roupas suadas, os marcadores para quadro branco, uma sacola, uma pasta antiga de couro falso, um moletom. Interessantemente, precisamente aquela noite não dormi no quarto, mas adormeci no sofá da sala. Acordei às cinco da manhã com o despertador que disparava incessante em sua rotina, camarada e impiedoso -- e, acordada, vi a presença de minha mãe na fenda de luz amarela que escapava por debaixo da porta do banheiro à madrugada. Não sei ao certo se a esperei sair do banheiro ou se me encontrava num estado de sopor grande demais que me movia mais lento que o tempo, talvez até o tenha imaginado, talvez mesmo sonhado, mas a vi no corredor escuro, e lhe sorri. No meu quarto, a cama me esperava paciente, arrumada, convidativa, e nela me deitei e me deleitei, mas dormi pouco. Ao acordar, notei que as coisas que havia tão desleixadamente atirado sobre o edredom estavam cuidadosamente, num equilíbrio certamente proposital, postas sobre a cadeira e sobre a escrivaninha do computador, de onde saíram e retornaram para descansar, agora elas, em minha cama quente. Passei um dia inútil. À noite, consegui escovar os dentes e trocar de roupa antes de me deitar, e notei que todas as minhas tralhas cotidianas ainda jaziam inertes, à mercê de minha vontade comum, sobre a cama bagunçada. Notei, ainda, que teria de refazer, agora eu, o que minha mãe fizera na noite anterior. Não sabia exatamente se por estupidez, impulsividade ou o que fosse, mas algo me impelia a simplesmente ignorar o destino próximo dos objetos e simplesmente removê-los dali. Eu sempre os punha nos mesmos lugares onde minha mãe os pôs à noite anterior, mas não com o mesmo o zelo, não com a mesma preocupação com o equilíbrio, como se o descanso deles fosse tão importante quanto o meu, como se, afinal, fossem corpos dentro dos quais habitassem também consciências, incapazes de se comunicar, de se expressar, mas, mesmo assim, consciências que existem, e não deixam de ser consciências por não serem percebidas. E só nessa transição de um dia para o outro (era aproximadamente meia-noite) percebi que sempre fazia o mesmo: chegava, atirava minhas tralhas sobre a cama de qualquer maneira, apenas para, à noite, ter de desfazê-lo e, pela manhã, refazê-lo, e assim sucessivamente. Finalmente compreendi aquela gente pedante que vivia dizendo que a História é um ciclo, que se repete, que as moscas mudam e a merda é a mesma (meu pai dizia isso). Brevemente, até cogitei criar um espaço onde pudesse colocar as minhas coisas todo dia, sem que devesse tirá-las de cima da cama antes de dormir e ali as recolocar quando acordasse. Mas qual é a graça de viver uma vida eficiente? A redundância me completa como a criatividade. A vida, na verdade, está nas redundâncias, e não nas congruências. A vida, a consciência, está na ausência total de um entendimento do real funcionamento de tudo -- a vida é, justamente, o aprendizado de que não há ortobiose do pensamento, do cotidiano, do conhecimento, do ser. A existência é demasiado complexa para existir eficazmente, sem suas redundâncias, suas repetições, suas falhas, suas elipses. Todos os que comparam o universo a uma máquina ou a um organismo são idiotas, pois não perceberam que o universo não escangalha como uma máquina, não fica sem óleo, ou necessita de um técnico. Nunca alguém levará o universo à autorizada da marca (se ele ainda estivesse na garantia, claro). Similarmente, ele não é um organismo, não morre, não adoece, não carece de médico -- ele não cura as próprias feridas, porque não se fere. Agora salvo o arquivo e vou dormir, certo de que, amanhã, haverá mais um dia. Mais um dia em que minha tralha irá da cadeira e da escrivaninha do computador à cama. E, em seguida, mais uma noite em que o caminho inverso se realizará.